Dizem que o dono da Poente Vermelho, uma cabana de praia em Porto Seguro, é tão frio, rude, indiferente e difícil de lidar que não dá um sorriso desde a final da Copa de 94, quando o Romário perdeu aquele gol. De ironia. Grosso, nunca dirigiu uma palavra de afeto nem à filha, que se casou no mês passado e ganhou de presente de casamento um pacote de biscoito. Salgado.
E, por coisas que ninguém entende, é justamente por esse gênio ruim que sua cabana vive cheia, com pessoas ansiosas por levar um xingamento daquela lenda da praia. Ou pra ver quem consegue, enfim, dobrar o coração do velho. E foi por isso que o bar da cabana ficou em silêncio naquele dia.
Um morador do sertão baiano, na cidade à procura de emprego, contava sua vida. A história era contada entre goladas de cerveja – paga por um turista argentino bem humorado – e todos prestavam atenção no pobre senhor que morava, como ele mesmo dizia, “pra lá da casa do Diabo”. Sentado num banco perto do balcão, ele falava pra todos, mas olhava mais pro dono da cabana de praia, que estava atrás do balcão com um paninho no ombro. O que levava todos a crer que éramos espectadores de um programa de TV protagonizado pelos dois, ali, ao vivo.
É claro que o sertanejo não falava dessa forma que escrevi e metade de nós passava o tempo todo perguntando “Hein? Que foi que ele falou ali?”, mas eu tentei simplificar um pouco.
- Lá onde eu moro – disse o sertanejo – todo mundo é tão pobre que nem se pode dormir até depois do Sol nascer, que acorda com a luz entrando pelo teto. Alguns de nós nem tem teto.
A platéia, chocada, se olhou com cara de “já imaginou? Nem teto!”. E o dono da cabana só olhando.
- A gente levanta e trata logo de comer uma farinha, que é pra agüentar o dia todo. Aí minha mulher e as mulheres das outras casas vão pra rua vender o artesanato.
O sertanejo mostrou o cordão, que tinha uma pequena escultura feita de barro.
- A gente sabe mexer com barro como ninguém.
E o dono da barraca, nada.
- Não vende muito bem não, mas dá pra comprar alguma coisa pra comer. No mês passado a gente comeu até queijo.
Sussurros pela cabana, “até queijo!”, em sinal de alegria pelo pobre senhor.
- E enquanto as mulheres fazem isso, eu e os outros homens separamos os tonéis de água.
Chegou ao ponto que todos esperavam. A água. A maior angustia de todos na cabana era imaginar como aquele povo fazia pra conseguir água – até barro eles tinham, água era o mínimo!
- E nós andamos. Andamos por uma, duas horas dependendo da direção do vento. E só carregando aqueles tonéis, pra trazer água pra todo mundo. E barro, claro, pras mulheres.
E todo mundo na cabana balançando a cabeça, imaginando o sofrimento daquele povo. O dono da cabana, impassível.
- A gente anda, chega no rio, enche tudo e volta. Volta mais devagar, claro. E aí é que fica mais difícil, porque o Sol começa a queimar. E Sol, no sertão, é mais forte que o daqui de Porto Seguro, que é onde ele só vem passar férias.
Risinhos na platéia. Menos do dono da cabana, que fingiu que não era com ele e limpou um pedaço do balcão.
- Aí, quando a gente chega em casa, nem tem tempo de descansar, vai logo ajudar a mulher. É difícil, viu, a vida no sertão...
E tomou mais um gole de cerveja. Todo mundo olhou pro dono da cabana. Era a hora do veredicto. E então, é difícil a vida no sertão? E o velho – e grosseiro – dono da cabana não perdeu a oportunidade:
- Entre ser pobre no meio do nada e ser pobre perto do rio, deixa de ser burro e te poupa da caminhada.
E foi, bufando, servir a turistada do outro lado.
Próximo tema: livre
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